Uma das minhas maiores preocupações, que me gerava muita angústia ao mudarmos de país, era de como seríamos atendidos em caso de problemas de saúde. Essa questão se multiplicou por mil com uma criança de 1 ano de idade. Meu marido acha que eu exagero, penso sempre no pior. Concordo em parte, pois é verdade que como já presenciei muita coisa, casos muito graves, situações dramáticas e complexas, além de ter estudado, de uma maneira geral, doenças e suas complicações… sim, eu vejo o lado pior. Discordo do fato de achar que não se deve pensar nisso. O fato é que adoecemos, e algumas vezes de forma inevitável. Sofremos acidentes. Nosso corpo, em algum momento, padece. E nesse contexto de doença, o ser humano se enfraquece, se apequena, se fragiliza. Precisamos de ajuda. Nem sempre bolsa de água quente, chá e repouso resolvem. E não conhecer como essa ajuda a acontece pode ser desesperador.
Por exemplo, fazia um pouco mais de um mês que havíamos chegado. A Milena estava resfriadinha e com apetite alterado. Havíamos passado o dia em casa com ela de repouso. A princípio, apenas sintomas esperados. À noite, ela dormiu rapidamente, porém meia hora depois acordou com um choro muito forte. Eu não conseguia acalmá-la. Acendi a luz para ver o que estava acontecendo e a situação piorou dramaticamente. Ela entrou em desespero, sacudia a cabecinha, berrando, com um choro que eu nunca havia visto antes, não deixava eu tocar nela. Gritei pelo meu marido tremendo, enquanto tirava a roupinha dela para tentar identificar a razão daquele quadro…parecia algo grave, como torção intestinal, por exemplo, algo que causasse dor intensa e aguda. Não encontrei nada, mas começamos a nos organizar para ir para emergência. Era inverno, noite escura, estava chovendo, ventando muito, nunca havíamos saído à noite nem pegado táxi na cidade. Não conhecia o hospital nem o sistema de saúde exatamente. Muito assustador para mim, mesmo sendo médica. Começamos a saga de pegar documentos, passaportes, muitas roupinhas e agasalhos, achar o número do táxi… e a Milena se contorcendo aos prantos…quando meu marido mostrou para ela o seu leãozinho de pelúcia e tudo parou como num passe de mágica. Ela começou a rir e se movimentar normalmente. Resumo: foi a primeira crise de terror noturno, que não precisa atendimento médico, apenas de nervos de aço. Mas o episódio serviu de teste para eu me preparar melhor para caso de urgências. Eu sabia que elas aconteceriam.
Vou contar para vocês algumas situações pelas quais passamos, tanto de urgência como de doenças e atendimentos de saúde, como eles se resolveram e os pontos positivos e negativos sob o meu ponto de vista.
1- Uma visão rápida sobre o sistema de saúde:
Aqui a grande maioria da população utiliza o sistema público. O atendimento primário acontece no Medical Group mais próximo de sua residência. O seu médico será um generalista (GP – General Practitioner), o qual sempre fará a sua primeira avaliação. Você precisa fazer o seu cadastro assim que chega. Todo o sistema é interligado, o que quer dizer que no hospital eles acessam seu histórico e vice-versa. As medicações prescritas são retiradas nas farmácias, sem custos. O farmacêutico tem um papel importante aqui. É ele quem, o não só checa a prescrição, mas também a lê com você e explica como se toma a medicação (em jejum, com alimentos, quantas vezes por dia, etc…). Além do mais, alguns problemas mais simples, como resfriados e também alguns problemas de pele, o farmacêutico é quem faz a primeira avaliação. Inclusive todas as farmácias tem um “consultório “, onde você conversa com o farmacêutico.
Com relação às medicações comuns, como paracetamol, dipirona, anti-gripais.. são vendidas em supermercados.
Pontos positivos: sistema organizado; você tem um médico que conhece todos os seus problemas; o farmacêutico é mais atuante. No começo achei esquisito, mas refletindo melhor, acho que esse sistema “desafoga” o médico, que atua então em casos mais complexos e também diminuiu a auto-medicação;
Pontos negativos: você não tem liberdade para escolher o seu médico. As mulheres, por exemplo, não tem a sua ginecologista; o acesso a especialistas é difícil, demorado e depende do seu GP. Como para os pacientes do SUS no Brasil, mas um pouco melhor;
2- Acompanhamento pediátrico:
Estou há um ano e meio aqui, e até agora a minha filha não teve consulta pediátrica de rotina. Logo que chegamos, ela foi chamada por uma Health Visitor (enfermeira) que ficou uma hora conosco, checando vacinas, avaliando o desenvolvimento psicomotor, os hábitos alimentares e de sono, e passando orientações de saúde (como escovar os dentes, como tratar resfriados, por exemplo) e de atividades (leitura, grupos, Biblioteca, pracinha… ). Ganhamos escova e pasta de dentes e um copo de transição. Entretanto, nem tocou na Milena, não pesou nem mediu. Na saída, me pegou de surpresa: “nos vemos daqui a um ano!” Recebemos uma cartinha com data e hora para uma vacina, a qual foi aplicada no Medical Group mesmo. E depois descobri que todas as quartas-feiras ocorre a Baby Clinic, onde você leva seu filho, sem hora marcada, e as enfermeiras atendem. As crianças são pesadas e medidas e você pode pedir alguma orientação quanto à saúde, a hábitos e à educação.
Em janeiro desse ano, a Milena teve catapora, pois ela não tinha recebido a vacina no Brasil e aqui eles não fazem, nem em clínicas particulares. Tudo se resolveu por telefone. Confiaram em mim. A receita foi enviada diretamente para a farmácia e eu fui lá apenas para retirar.
Pontos positivos: consulta com uma abordagem mais ampla sobre desenvolvimento e educação das crianças, o que muitos pediatras não tem tempo de fazer. No Brasil não é usual se prescrever anti-histamínico para aliviar a coceira da catapora. Achei ótimo. Ajudou muito.
Pontos negativos: para mim, o exame físico é fundamental. A maioria dos pais não tem condições de detectar precocemente algumas alterações. “Pé plano”, por exemplo. Uma condição que pode ser corrigida quando corretamente diagnosticada. Por isso é fundamental uma avaliação inicial de um médico pediatra;
Não ter vacina para catapora. Sabe-se que a catapora no adulto pode ser fatal. Além do que, quem teve catapora na infância, pode desenvolver herpes zoster na vida adulta, o que vai ser o caso da minha filha;
Resolver o caso por telefone é arriscado. Muitas doenças da infância se manifestam com lesões de pele;
3- Crise de pedra nos rins:
Meu marido acordou numa madrugada de domingo com crise de pedras nos rins. Ele já teve isso várias vezes, por isso sabíamos do que se tratava. Enquanto ele vomitava de dor, eu falava com a enfermeira do 111, o número de emergência daqui. Após ter certeza de que ele não estava morrendo, ela pediu para aguardarmos que ela ligaria com as orientações. De maneira estranha, ela nos disse que não era uma situação comum. Mas nos retornou em alguns minutos, confirmando que estariam nos esperando na Emergência do hospital. E assim foi mesmo, a secretária já estava com todo o histórico quando chegamos e em torno de 30 minutos, meu marido estava sendo medicado. Aliás, quem prescreveu foi o enfermeiro. Quando ele já estava sem dor, foi avaliado pela médica de plantão e liberado… sem nenhum papel. Só com orientação de analgésicos e, se precisasse, para consultar com o GP.
Pontos positivos: pouca burocracia no hospital; Atendimento rápido e poucas pessoas esperando;
Ambiente limpo e organizado;
Atendimento, pelo enfermeiro, ágil e resolutivo, num caso em que o diagnóstico é comum e já estava estabelecido;
Existe paracetamol endovenoso e funciona;
Pontos negativos: o atendimento por telefone foi bastante burocrático, não sei se funciona assim quando o caso é de parada cardíaca, por exemplo. Espero que não;
Acho que é nosso costume, mas ficar sem nenhum papel nos deixa meio perdidos. Embora tenhamos recebido uma carta para consultar com o GP sobre o episódio;
4- Urgência oftamológica:
Seria engraçado se não fosse trágico. Meu pai colocou remédio para calo no olho, pensando que era colírio. Ficou muito vermelho e todo a pálpebra inchada. Fomos no farmacêutico logo e ele nos explicou que várias óticas oferecem serviços de emergência oftamológica, como o caso dele. Achei que eu não tinha entendido direito, mas era isso mesmo. Fomos atendidos numa grande ótica no shopping, por um optometrista, que além de fazer um exame detalhado, também fez uma receita de óculos. Prescreveu os colírios e explicou direitinho como seria a evolução, além de matar minha curiosidade sobre como é a formação de um optometrista.
Pontos positivos: atendimento rápido;
O exame de fundo de olho é feito sem dilatar a pupila e a imagem é amplificado na tela do computador, antes da consulta. Achei muito legal;
Exame oftalmológico completo;
Conheci e respeitei a formação de optometristas;
Pontos negativos: O seguro de saúde não cobre esse tipo de atendimento. Paga-se 36 libras, o que achei bem razoável;
Nem acho que seja ponto negativo, mas o fato é que esse sistema funciona só para casos como o do meu pai. Glaucoma e catarata, por exemplo, só com oftalmologista;
5- Exacerbação de bronquite
Meu pai de novo (como vocês podem perceber, a visita dele foi com emoção). Ele começou com alguns espirros, que evoluíram para uma tosse incessante. Depois de cinco dias, com muita dor no corpo de tanto tossir, ele concordou que precisava ver um médico. Ligamos para o seguro no Brasil, que rapidamente agendou uma consulta médica em uma clínica particular. Um lugar bem moderno, médico atencioso. Examinou meu pai, incluindo oximetria (medida de oxigênio na corrente sanguínea com aparelho portátil que engloba alguma extremidade do corpo, mais comumente os dedos).
Diagnóstico de infecção de vias aéreas.
Pontos positivos:
Exame físico bem feito;
Renovou toda a receita do meu pai (três páginas!);
Forneceu o antibiótico ali mesmo;
Retorno sem custos para revisão;
Pontos negativos: não achei nenhum;
6- Saúde da mulher
Após alguns meses aqui, recebi uma cartinha me convocando para fazer o exame preventivo de colo de útero, o Papanicolau. Achei legal, pois pensava que como estrangeira, não teriam essa preocupação comigo, ou melhor, eu não entraria nesse sistema. Então, lá fui eu. Rapidamente a enfermeira coletou meu exame e em uma semana o resultado chegou na minha casa.
Pontos positivos: realizar o exame em todas as mulheres, mesmo nas que estão aqui temporariamente;
Pontos negativos: a periodicidade do exame é de 3 em 3 anos, muito tempo;
Novamente, não tem exame físico por um médico. E o exame de mama? E o exame ginecológico de rotina?
Acho que se perdem muitos diagnósticos precoces.
7- Gestação e parto
Não foi o meu caso, uma vez que tive a Milena no Brasil, mas ouvi tantos relatos, que achei legal contar. O acompanhamento obstétrico é regular, mas não é o mesmo profissional que irá fazer o parto (quem fará é o plantonista, igual ao nosso SUS). Em geral, apenas duas ecografias são realizadas durante a gestação e o acompanhamento da idade gestacional é com a velha fita métrica. O toque do colo do útero parece ser reservado para o parto. Ouvi um relato de uma gestante que ia viajar de avião com 33 semanas e não teve essa avaliação para ser liberada. Quanto ao parto, para aquelas mulheres de quadris o largos, abençoadas pela natureza, a experiência de ganhar o bebê aqui foi ótima. Entretanto, ouvi mulheres que sofreram muito, ficando 48h, 72h em trabalho de parto… para no final, terminar em cesárea ou fórceps. Essas mulheres ficaram traumatizadas e foram ter o segundo filho no seu país de origem.
Pontos positivos: priorizar o parto normal;
Pontos negativos: para algumas mulheres foi traumatizante, quando a opção pela cesariana poderia ter sido escolhida mais precocemente;
8- Braço quebrado
Era um dia normal e eu estava tomando meu banho, por volta das 18h, quando meu marido invade o banheiro apavorado: a Milena havia caído do sofá por cima do braço e agora chorava desesperadamente sem mexer a mãozinha. Só me enrolei na toalha, tirei a roupinha e o braço estava bem inchado. Só havia uma coisa para fazer: emergência. Enquanto ele ligava para o 111 eu coloquei gelo, dei um analgésico … e ela dormiu. No táxi, a caminho do hospital, ela já estava tagarelando. Achamos que poderia ser só uma torção, entretanto o RX mostrou uma fratura. Meu coração partiu quando ela pedia chorando para tirar o gesso. Já imaginava o quanto ela sofreria sem mexer o bracinho.
Pontos positivos: hospital infantil muito limpo, organizado, com brinquedos, tempo de espera curto, sem crianças estressadas; equipe com muita paciência e simpática; a enfermeira explicou detalhadamente todos os cuidados com gesso e forneceu um folheto; saímos já com a consulta médica marcada para 7 dias;
Pontos negativos: não examinaram o braço, apenas de longe; não prescreveram analgésicos;
De uma maneira geral, o sistema tem uma boa estrutura física e é muito organizado com acesso fácil a atendimento e medicações. Entretanto, como brasileira e como médica fiquei me sentindo um pouco insegura, principalmente quanto a medicina preventiva.
Tatiana
Quebrei o pé em Edinburgh enquanto fazia minha mudança, em um sábado de maio. Estava descendo a calçada, cheia de bolsas quando virei o pé. Como viro o pé com frequência logo percebi que algo estava errado. Nem liguei para a emergência, resolvi arriscar e ir logo para a emergência do hospital. Incrivelmente o atendimento foi rápido (haviam me dito que provavelmente eu esperaria horas). Passei por uma enfermeira que examinou a região e me encaminhou para o raio-x. Um tempo depois fui chamada por um médico (que não era ortopedista) que confirmou uma fratura pequena na base do 5º metatarso. Ele me deu um papel explicando que fratura era essa e me mandou para casa sem qualquer tipo de imobilização e apenas com orientação de tomar paracetamol para a dor. No papel dizia que o tempo de recuperação era de 6 semanas, mas que seria normal eu sentir dor por até 3 meses. Se depois disso eu seguisse com dor, para voltar para avaliarem a necessidade de cirurgia.
Gosto muito desse método prático do atendimento deles em geral, mas me senti completamente desamparada ao me ver com um pé quebrado sem nenhum tipo de imobilização e com indicação de apenas tomar paracetamol.
Silvia
Oi Tatiana!! Pois é, são situações complicadas, né? No fim, os nossos casos se resolveram bem, mas também fiquei insegura. Obrigada pelo relato! Beijos
Thais
Oi Silvia,
Sou brasileira e também moro.em Aberdeen. Acabei de ter meu filho aqui (ele está com 2 semanas). Pra mim, seu ùltimo parágrafo resumo o que eu penso do NHS: infelizmente, não há a prática da medicina preventiva. Sei que há quem ame e quem odeio o NHS. Eu fico no meio do camino. A parte que me encanta é, sem dúvida, o trabalho das midwives. Sou muito grata a elas durante a minha gestação. Infelizmente, caí na parcela das mulheres que sofreram muito com o partp normal pra no final precisar de uma cesárea. Mas, deu tudo certo!
Silvia
Oi Thais!!! Obrigada por compartilhar a tua experiência!! E que bom que está tudo bem contigo e com o teu bebê! Vamos torcer para o NHS melhorar os programas de prevenção né? Beijos
Caroline Daudt
Gostei muito do blog e do seu relato!
Sou brasileira e estou de mudança para Aberdeen até o fim de agosto, meu marido já se encontra na cidade.
Vinha pesquisando muito sobre casos de saúde, pq tenho uma enteada de 16 anos, e adolescentes em mudanças drásticas costumam terem muitas dificuldades de saúde para se adaptarem, por alimentação principalmente.
Ao mesmo tempo queria saber se você sabe alguma coisa sobre tratamentos dentários na cidade.
Uso aparelho ortodôntico, estou na fase final do tratamento e não consigo tirar no Brasil antes de ir.
Pesquisei algumas coisas, encontrei clínicas no centro de Aberdeen, mas não sei bem se e válido tratamento privado ou público, e na verdade nem sei se tem esse tipo de atendimento público, porque não encontrei nenhum site com referências públicas.